segunda-feira, 24 de maio de 2010

... e as palavras sem som

Aqui de longe, onde tudo e nada acontece numa intensidade inexplicável, eu te escrevo agora desse jeito meio boçal pra dizer que não falo mais contigo e falo, mesmo assim, todos os dias. Imagina, tu nem conhece Buenos Aires e já conhece tudo. Já caminhou comigo por essas avenidas largas, por essas praças verdes, por esses lugares cheios de turista querendo ver tudo num dia só. Já pagou 20 pesos por um café só porque era numa esquina charmosa e tinha pessoas com cara blazé lendo aquele jornal gigante que nem tem como segurar. Tá, eu sei, nem a pau tu pagaria 20 pesos por um café, mas aqui a gente não se apega à essas questões mundanas. Já sabe andar no subte de olhos fechados e te arrepia também quando aquele negócio faz uma curva e vem aquele barulho de maquininha de açougue, saca? Eu acho uma graça em te ver irritadíssimo com essa mania que eles tem de buzinar até pra uma pobre mosquinha atravessando fora da faixa, e se perguntando por quê diabos todo garçon aqui tem aqueles mullets no cabelo e parece não escovar os dentes desde a copa de 86. Aí, nesses caminhos é que a gente tem os maiores diálogos, daqueles em que eu despejo mil coisas desconexas e tu resume tudo com uma palavrinha só, daquele teu jeito de me dizer as coisas com a delicadeza de não me fazer pensar que eu sou mesmo é uma louca de atar em poste.

Porque sabe, quando eu vou ali no mercadinho dos chineses que não falam espanhol, nesse caminho eu tenho complexos diálogos contigo. São 19 andares pra baixo e mais 100m pra frente e eu vou tentando te explicar toda essa coisa funda e enigmática que me invade quando eu penso na vida, e ao mesmo tempo aquele estado de graça que me vem de pensar no monte de coisas que se acumula na minha frente, se esgueirando pelos cantinhos e só esperando pra acontecer. E aí eu tento fazer um desenhozinho com os dedos, assim, no ar, pra te mostrar o tamanhico que eu me sinto diante da vida e de todo esse monte de coisas que ela tenta me mostrar todo dia. E como sempre, eu dou um jeito de fazer uma piada, daquele meu jeito torto de fazer piada com o que me machuca. E eu te explico e explico e vou te vendo com aquela cara que tu sempre me olhava quando eu desandava a falar merda, aquela cara de "só tu mesmo, fulana" balançando a cabeça no eixo x e com um risinho no canto da boca, e vou escutando baixinho as coisas absurdas que eu ouviria como resposta. Absurdas de tão simples e por isso mesmo tão certeiras. Eu bem que tento argumentar, te dizer que óbvio que eu tenho razão, porque coitada, eu sempre penso que tenho. E tu dá aquelas três batidinhas na minha cabeça, franze o nariz e diz "tá bom, tá bom". E de novo, eu engulo a tua simplicidade, me rasgo com a tua banalidade. De novo e de novo. E aí vou ficando pequeninha de vergonha, porque na tua resposta imaginada é que eu acho as respostas que fogem de mim.

Aí eu vou na lavanderia de uns outros chineses que também não falam espanhol e no caminho vou te contando os meus planos, todos eles, começando com meu plano de hoje abrir aquele Malbec e me atirar no sofá pra ver aquele filme meia-boca pela trilhonésima vez, mas agora na versão dublada-em-espanhol-la-garatía-soy-djô, e terminando no meu plano mirabolante de largar tudo novo que eu vejo aqui e voltar pro sempre-mais-do-mesmo que me corrói aí em casa. E no caminho eu te ouço me dizer, placidamente, que quem sabe tudo isso é um jeito de o destino me mostrar as coisas que eu tenho que aprender. E fico em silêncio de novo, enterrando a minha enxurrada de palavras diante da meia dúzia de coisas que tu consegue dizer, e que me soam tão verdade que chega a doer.

Aí eu fico assim, te ouvindo na minha cabeça e acreditando mais em mim e nos propósitos obscuros que andam por aqui. Eu tenho muito mais certeza de que não adianta querer saber tudo, não adianta aprofundar tudo, querer viver tudo, querer ser tudo. Que às vezes eu tenho que deixar esse abismo de lado e ser mais poça d'água mesmo. E eu vejo coisas e sorrio, pensando que tu viu também e que daqui a pouco vai fazer um comentário daqueles teus que me fazem rir, depois de ficar uns segundos tentando descobrir se tu tá falando sério ou tirando uma onda com a minha cara.

Agora vem, vamo comigo ali na farmácia, que eu vou finalmente comprar um xarope pra essa tosse que toda noite ajuda a minha velha insônia a não ir embora. Aproveita e não me deixa comprar sem olhar o preço, como eu sempre faço. Vem, que hoje é feriado aqui, a rua tá vazia de argentinos carrancudos e cheia de folhas cor de ferrugem que caem dos plátanos, que já tão querendo ficar pelados pra deixar o sol do inverno bater na nossa moleira. Vem comigo, que no caminho eu vou terminando de te contar sobre aquele negócio que eu fiquei pensando essa madrugada, enquanto olhava do 19º andar as luzinhas acesas dos insones iguais a mim. Vem, que tá tudo tão complicado e meu coração metido a profundo tá precisando engolir um pouco mais da tua simplicidade.

7 comentários:

inez bueno disse...

mazzzáaaa

Paula disse...

só tu mesmo, dê, pra escrever assim, tão cheia de clareza e profundidade ao mesmo tempo. viajei contigo nesse texto!

Ju disse...

nossa, fui longe agora!
amei!

Tai disse...

chorei!

Anônimo disse...

Puta merda, tu escreve muito, hein, guria!!!!
Bjos
Mari

Carol disse...

profundéssimo!!cortou meu cortou o coracao!beijo

Julia disse...

amei, chorei e o escambau. saudades das nossas conversas (filosóficas, poéticas, cretinas, divertidas...)